Por Gustavo M. de Freitas

O artigo quinto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988(BRASIL, 1988) demonstra a alimentação como um direito de todos os brasileiros. Na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (BRASIL, 2006) diz que um dos responsáveis por garantir esse direito deve ser o poder público. Assim sendo, é notável que a alimentação é mencionada pela lei como um fato de responsabilidade política. 

Nessa lei, o direito à alimentação é ampliado de modo a demonstrar que ele deve ser garantido de forma adequada, ou seja, é explicado que ele deve ser feito de forma a dar segurança alimentar e nutricional.  Portanto, como é demonstrado no artigo terceiro dessa lei, deve-se garantir a todos:

[…] acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis. (BRASIL, 2006, não paginado)

Por conseguinte, é interessante notar como a legislação vai demonstrar que a alimentação deve ser garantida pelo Estado, porém não apenas uma quantidade de alimento, mas também um alimento saudável, sustentável e cultural. Logo, entender essa relação entre alimento e poder político se demonstra importante para a gastronomia na medida que ela estuda os sistemas alimentares em sua totalidade de modo a buscar entender os agentes que trabalham para constituí-lo e que irão defini-los. Logo, como se pode ver na lei, o governo é um dos agentes. 

Essa resenha temática está dividida em quatro partes, sendo a primeira delas essa introdução. Na segunda parte apresenta-se o problema e objetivo. Logo após, é trago a parte que traz a discussão entre diversos autores. Por fim, observa-se a parte que apresenta a conclusão da resenha crítica. 

Conforme o Painel de Especialistas de Alto Nível em Segurança Alimentar e Nutrição:

Um sistema alimentar reúne todos os elementos (ambiente, pessoas, insumos, processos, infraestruturas, instituições, etc.) e atividades que se relacionam com a produção, processamento, distribuição, preparação e consumo de alimentos e os resultados dessas atividades, incluindo resultados socioeconômicos e ambientais. (HLPE, 2017, p. 11)

A partir de que o sistema alimentar abrange diversos fatores, a relação entre alimentação e a política é complexa. Dessa forma, para um melhor entendimento e uma facilitação da discussão do assunto foi delimitado um dos componentes do sistema alimentar brasileiro: os agrotóxicos. Logo, mediante a função estatal de garantir uma alimentação com segurança alimentar e nutricional, surge o questionamento: como as ações do estado sobre essas substâncias tóxicas impactaram na alimentação da população brasileira?

Por conseguinte, inicialmente se objetiva delimitar a relação entre governo e os agrotóxicos. Posteriormente, se tem o objetivo de observar as consequências desses produtos para alimentação e para a sociedade. Assim, se chegará ao objetivo final de entender como as ações do estado sobre essas substâncias tóxicas impactaram na alimentação da população brasileira.

De acordo com Soares et al. (2019), existe uma lei que regulamenta os agrotóxicos no Brasil, a Lei nº 7.802. De acordo com essa lei (BRASIL, 1989, não paginado), esses produtos “só poderão ser produzidos, exportados, importados, comercializados e utilizados, se previamente registrados em órgão federal, de acordo com as diretrizes e exigências dos órgãos federais”. Portanto, quem é responsável por controlar esses produtos é o poder público.

 A partir de Rigotto, Vasconcelos e Rocha (2014, p. 1), ao refletir os “futuros para a questão dos agrotóxicos no Brasil supõe analisar as disputas em curso no campo social, no qual agentes lutam por projetos e interesses distintos, muitas vezes contraditórios inclusive nos valores éticos que os orientam”. Dessa forma, o que o governo fará em relação a esses insumos tóxicos será definido por essas disputas no campo social. Diante disso, as grandes corporações econômicas que vão em direção a produção de commodities, amparados em seu poder econômico e político, tecem fortes alianças com poderosos segmentos do Estado (RIGOTTO, VASCONCELOS, ROCHA, 2014).

Essas alianças vão gerar políticas de crédito público para os complexos agroindustriais, de desregulamentação e de flexibilização da legislação (RIGOTTO, VASCONCELOS, ROCHA, 2014). Um exemplo dessa situação é o PL nº 3.200/2015, que tem “o objetivo de simplificar o registro e a autorização dos agrotóxicos” (BRASIL, 2015 apud SOARES et al., 2019, p. 340). Outra situação é a PLS 209/2013, que determina que um único órgão centralizará os procedimentos para avaliação dos agrotóxicos, de modo a fazer com que jamais se recuse uma liberação solicitada pelo setor econômico (RIGOTTO, VASCONCELOS, ROCHA, 2014).

Todas essas políticas vão gerar um aumento e uso descontrolado dos agrotóxicos. Fato que pode ser notado nos dados trazidos por Vasconcellos et al. (2020), que demonstra que o país que ocupa a posição de maior consumidor de agrotóxicos do mundo é o Brasil. Também podem ser vistos nos estudos da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA, 2013), em que demonstra o encontro de dois agrotóxicos não autorizados nos produtos alimentícios brasileiros.

Portanto, esses produtos químicos que estão muito presente no sistema alimentar brasileiro, de modo a ser “possível considerar que a maior parte da população esteja exposta a eles de alguma forma, seja pela aplicação desses venenos, pela proximidade com regiões de cultivo ou pelo consumo de alimentos contaminados” (SOARES et al.,2014, p. 339). Dessa forma, as consequências à saúde desses insumos tóxicos alcançaram muitas pessoas. Sendo “as consequências agudas e crônicas publicizadas englobam: alergias, distúrbios gastrintestinais, respiratórios, endócrinos, reprodutivos e neurológicos, neoplasias, mortes acidentais e suicídios” (CARNEIRO et al., 2015 apud SOARES et al., 2014, p. 339).

Logo, a gravidade dessas consequências pode ser vista mediante os dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN) cujo “indicam que […] as intoxicações deles derivadas aumentaram de 2007 a 2016, ocupando o segundo lugar entre as intoxicações exógenas e a primeira posição em letalidade” (FROTA, SIQUEIRA, 2021, p. 1). A consequências ficam piores na medida em que elas também causam efeitos negativos a todo o ecossistema, poluindo fauna, flora, ar, água e solo (CARNEIRO et al., 2015; LONDRES, 2011; PIGNATI et al., 2007 apud SOARES et al.,2014). Assim, os agrotóxicos geram problemas ambientais e de saúde para a sociedade.

Apesar desses problemas negativos, “a aplicação de agrotóxicos ganhou força principalmente a partir dos anos 1960 com o advento da chamada “revolução verde”” (FROTA e SIQUEIRA, 2021, p. 1). Portanto, esses insumos tóxicos foram adicionados por essa revolução “com a promessa de aumentarem a produtividade no campo e, consequentemente, sanar a fome”, porém “esse problema não é resultado da forma de produção de alimentos, e sim de fatores econômicos, políticos e sociais que afetam a distribuição e o uso de alimentos” (MALUF, 2009 apud SOARES et al.,2014, p. 339).

O Estado ao servir um poder hegemônico é notável que ele é um dos responsáveis por produzir e difundir o “mito de que, sem os agrotóxicos, não é possível produzir” (SOARES et al.,2014, p. 339). Desse modo, o poder público que deveria fazer o controle desses produtos químicos não faz, portanto, essas substâncias causam os problemas ambientais e sociais. Logo, a falta de ações governamentais gera as diversas consequências negativas dos insumos tóxicos.

Dessa forma, esse alimento intoxicado faz com que o direito à alimentação adequada não seja cumprido na medida que a segurança alimentar não é garantida. Assim, se configura como uma falta da segurança na relação que o indivíduo e o coletivo têm com o alimento, trazendo um “sentimento de impotência em face de um sistema socioeconômico e político que mantém as pessoas em situação de vulnerabilidade” (ALIAGA, SANTOS, TRAD, 2020, p.11).

Portanto, alimentação não é apenas “uma questão puramente biomédica e individualizada”, mas sim “uma questão política, como expressão das desigualdades e das relações de poder, nas quais os indivíduos estão inseridos” (ALIAGA, SANTOS, TRAD, 2020, p. 12). Logo, conforme Porto, Rocha e Finamore (2014, não paginado), é necessário “superar a tendência a considerar [as] populações como passivas e abstratas para situá-las como sujeitos políticos e históricos, culturalmente situados, detentores de direitos”. Por fim, “a segurança alimentar e nutricional é, antes de tudo, um objeto de direito e um objeto de luta política em seu sentido primário” (ALIAGA, SANTOS, TRAD, 2020, p. 13)

Referências

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RIGOTTO, Raquel Maria; VASCONCELOS, Dayse Paixão e; ROCHA, Mayara Melo. Uso de agrotóxicos no Brasil e problemas para a saúde pública. Cadernos de Saúde Pública, v. 30, n. 7, p.1-3, jul. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csp/a/7ZdQTpMhCT5n6Gvv9ZHKnqK/?lang=pt#. Acesso em: 22 maio 2021.

VASCONCELLOS, Paula Renata Olegini; RIZZOTTO, Maria Lucia Frizon; OBREGÓN, Phallcha Luízar; ALONZO, Herling Gregorio Aguilar. Exposição a agrotóxicos na agricultura e doença de Parkinson em usuários de um serviço público de saúde do Paraná, Brasil. Cadernos Saúde Coletiva, v. 28, n. 4, p.567-578, oct./dec. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/cadsc/a/rZvWqRcHvNfYrQmvpZp46Ft/?lang=pt. Acesso em: 22 maio 2021.

SOARES, Marcia Maria Arenhart; ZUCHI, Ana Paula; LOPES, Carla Vanessa Alves; ANJOS, Mônica de Caldas Rosa dos. Percepção de conselheiros de saúde acerca do tema agrotóxicos: o papel da participação social em uma sociedade que adoece. Saúde e Sociedade, v. 28, n. 1, p.337-349, jan./mar. 2019. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/sausoc/2019.v28n1/337-349/#. Acesso em: 22 maio 2021.

ALIAGA, Marie Agnès; SANTOS, Sandra Maria Chaves dos; TRAD, Leny Alves Bomfim. Segurança alimentar e nutricional: significados construídos por líderes comunitários e moradores de um bairro popular de Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 1, p.1-15, 20 jan. 2020. Disponível em: https://www.scielosp.org/article/csp/2020.v36n1/e00169218/. Acesso em: 21 maio 2021.

HLPE. Nutrition and food systems. A report by the High Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition of the Committee on World Food Security, Rome, 2017. Disponível em: http://www.fao.org/3/i7846e/i7846e.pdf . Acesso em: 23 maio 2021

FROTA, Maria Tereza Borges Araujo; SANTOS, Carlos Eduardo Siqueira. Agrotóxicos: os venenos ocultos na nossa mesa. Cadernos de Saúde Pública, v. 37, n. 2, p.1-5, fev. 2021. Disponível em: https://scielosp.org/article/csp/2021.v37n2/00004321/pt/. Acesso em: 21 maio 2021.

BRASIL. LEI nº 11.346, de 15 de setembro de 2006. Cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SISAN com vistas em assegurar o direito humano à alimentação adequada e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11346.htm#:~:text=Lei%20n%C2%BA%2011.346&text=LEI%20N%C2%BA%2011.346%2C%20DE%2015%20DE%20SETEMBRO%20DE%202006.&text=Cria%20o%20Sistema%20Nacional%20de,adequada%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias. Acesso em: 22 maio 2021.

ANVISA. AGENCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. Programa de análise de resíduos de agrotóxicos em alimentos (para): relatório de atividades de 2011 e 2012. Brasília, 29 out. 2013. Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/agrotoxicos/programa-de-analise-de-residuos-em-alimentos/arquivos/3791json-file-1. Acesso em: 19 maio 2021.PORTO, Marcelo Firpo de Souza; ROCHA, Diogo Ferreira da; FINAMORE, Renan. Saúde coletiva, território e conflitos ambientais: bases para um enfoque socioambiental crítico. Ciência e Saúde Coletiva, v. 19, n. 10, p. 4071-4080, out. 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/csc/a/Xw4CkyySPvNVHzbD93vKrwC/?lang=pt. Acesso em: 18 maio 2021.